01/08/2012

Meu primeiro cabelo branco

Na fila para entrar no museu, Bernardo nota em minha cabeça um cabelo de pigmento diferente. Eu, que nunca tingi o cabelo e tomo uma quantidade razoável de sol diariamente, contestei: o sol queima o cabelo, é assim mesmo. A resposta veio um pouco tímida: acho que não... acho que é branco mesmo. Há! Que nada, não tenho nem trinta ainda! Arrancaí para que eu veja.

E sim, era meu primeiro fio de cabelo branco.
A mortalidade adquirida por meu próprio desejo, ou a mortalidade advinda de uma situação rápida e trágica (um acidente de carro, um tiro, uma facada, um atropelamento, um terremoto ou tsunami!) nunca foram tabu para mim. Mas morrer de apodrecer, morrer de tempo, morrer devagar e acompanhando naturalmente o fluxo da maturação, isso nunca tinha passado pela minha cabeça até ter consciência do meu primeiro fio de cabelo branco.

Quanto drama!, muitos outros virão! A questão não é unicamente estética, afinal, não é tão complicado, são apenas duas opções: pintar ou não pintar os cabelos. A questão não é apenas confrontar-se com a perda gradual da possibilidade da utilização de um apelo diretamente vinculado ao sexo, à imagem e ao machismo (em outras palavras: se sentir mais murchinha porque não se sente atraente fisicamente); a questão também não é não aceitar o tempo passar. A questão, o drama em si, veio com a constatação óbvia, atrasada, naif: estou apodrecendo continuamente e vou morrer – possivelmente disso.

Simular a morte em situações trágicas é relativamente descomplicado: por exemplo, vc pode imaginar que foi atingida por uma bala de revólver, o sangue, a dor, a velocidade dos acontecimentos subsequentes e prontamente o fim. É um jeito rápido de morrer e, antecipando os fatos, não parece tão trágico assim, especialmente se você rodar esse filme na sua cabeça algumas vezes, ou se esse filme rodar no cinema em 4 a cada 5 filmes.
Já morrer de tempo, isso é incalculável, imprevisível, caótico, fora de controle. Pode ser um cancerzinho de estômago que se arrasta por anos, pode ser uma artrite que te impede de se movimentar, de tomar banho, de andar, de escrever, pode ser um Alzheimer que te torna dependente de algum ser bondoso e altruísta que tem que tomar conta de você por anos a fio... Pode ser que em algum tempo você não possa nem se abaixar para pegar o garfo que caiu, pode ser que em algum tempo você não consiga nem dizer aquilo que pensava, pode ser que em algum tempo você não possa tomar café ou comer chocolate! Pode ser que você não consiga se lembrar do gosto do chocolate, do nome das pessoas que ama, do seu lugar favorito, do seu trecho predileto naquela música...

Mas talvez o que mais tem me chocado em relação à minha nova, bobinha mas grandiosa aquisição pessoal é a possibilidade de não fazer diferença nenhuma para o mundo ou para alguém, de ter sido uma ladra de recursos e de energia, que não converte os benefícios em outros benefícios, que não reverte a energia consumida em energia aproveitável, que não deixa nada para o mundo senão a fumaça de um carvão queimado em vão, enfim: um medo de ser só um verme.

Eu acharia o máximo terminar este post com uma mensagem positiva, bacana, dizer que eu encontrei uma luz no fim do túnel, que eu vou virar vegana, fazer yoga, dizer que amo todo mundo, abraçar árvores, viajar para lugares exóticos, ligar histericamente para uma amiga e dizer "abígãm, que revelação que eu tive hoje!", repassar correntes de caridade fake no facebook, ler os powerpoints que a minha família manda sobre bondade e Deus, eu poderia escolher uma religião e deixar claro a todos ao meu redor que eu sou automaticamente boa gente porque acredito em "algo maior", eu poderia terminar este post dizendo que eu mudei, que agora tenho um otimismo incrível no ser humano, no mundo, no cosmos, na natureza!!!

Mas não, não dá. Tudo o que mudou em mim é a consciência de que ser um verme, insignificante, vai ser pior do que ter cabelos brancos, quer eu os pinte ou não.



22/11/2010

Acho preferível uma discussão honesta, ainda que exaustiva, do que aquela feição plácida e lodosa de quem pensa uma coisa e treina os músculos faciais para demonstrar outra.

e hoje eu tô puta...

07/11/2010

eco

Intimidade
ade...


ade...


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a...












a...




















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21/06/2010

Tetsuo Ishida






Moderninhos de plantão preferem instalação.
Eu acho que o suporte não importa; importante é sua voz.

07/05/2010

É preciso cair na real: não se pode desescolher.




escultura: O Impossível, de Maria Martins, 1945

23/02/2010

Uma cadela.

Algumas vezes sinto a necessidade de me desprover de pensar.
Tento lugares vazios, silenciosos ou com algum tipo de mato por perto, um tipo de imbecialidade semi-iogue que me imponho quando o fato de ser pensante se torna --e me torna-- insuportável.
Tentando não pensar, só e afundada no banco da pracinha, me atravessa os olhos inchados e raivosos uma cadelinha.


Ela não é de raça. Quer aproveitar cada matinho molhado com urina alheia, quer cheirar todos eles, quer se esfregar com alegria na grama e sujar o focinho na lama. Quer desesperar as pombas e persegui-las por diversão e por força do instinto. Ela quer andar distraída, cheirar o rabo dos outros cachorros, batalhar a comida no lixo, provocar a pedrada dos meninos e a migalha dos idosos; quer correr, fugir, voltar, se achar. Ela é uma vira-lata.
Presa com um peitoral de couro ligado à uma corrente de ferro, é puxada com força pelo seu dono. Ele teima em transformá-la numa obediente e elegante cachorrinha de passeio, com andar regular e olhar fixo, que entende o automatismo do passeio que serve para queimar calorias, prevenir o enfarto, lidar com o estresse e fazer o cachorro defecar fora de casa. O cachorro de raça sabe que ele tem de ter classe, educação e obediência. Ele sabe onde é seu lar e a quem deve prestar contas. Ele não se dispersa, ele não regozija-se com cada objeto estranho da pracinha. O cachorro de raça sabe o que é preciso fazer para morrer de podre, de velho, de luxo.
A cadelinha vira-lata teima em ser curiosa, insaciável e insatisfeita.
Ela vai, fatalmente, morrer de vida.

02/02/2010

Domingo.

Sentir indiferença despropositadamente é, para os intensos, libertário.

29/01/2010

Como um resumo escolar sobre as férias e cartão de ano novo.

Minhas férias foram ótimas!
Tomei sol, andei em praias desertas, vi animais que não pombos ou cachorros à uma distância razoável de 25 cm, descobri que sou alérgica a lagostas, vi literalmente o cão chupando manga. Vi o macaco mais inteligente do mundo (o macaco prego, que tem seu pênis em forma de prego invertido) batendo uma, mas antes lubrificando a mão com o próprio cuspe (!!!), vi pavões se exibindo para suas fêmeas, vi galinha subindo em árvore com medo de gato-do-mato, comi uma fruta que deixa um gosto maravilhoso de flor dentro da boca, dei o primeiro passo para aprender a nadar, fui ferozmente atacada por pernilongos, fiquei praticamente todos os dias de pança para o ar depois do almoço, balancei na rede com calma, ouvi muitos silêncios diferentes, voltei duas vezes parcialmente carregada para casa depois de umas doses extras de champanhe e de cointreau (o que me rendeu o indigesto apelido de "panetone"), venci mais algumas páginas do tedioso Montanha Mágica, tirei muitas fotografias, não pensei em muitas coisas. Descansei.

Voltei e o ano só começou hoje: todos os meus fantasmas futuros estão aqui, cobrando.
Se eu fosse escrever um cartão daqueles de "Feliz Ano Novo!", escreveria para mim:


Fernanda,

Desejo para mim mesma um ano melhorzinho! Sem auto-boicote, ganhando mais um pouquinho de reais por mês, estudando piano todos os dias, finalizando e ouvindo peças de 3 em 3 meses, aprendendo mais coisas, realizando mais projetos, e que você consiga dar o fora daqui.

Também espero que você seja menos pontiaguda, que sinta menos e faça mais e que cuide de si antes de cuidar dos outros e que aprenda a dançar. Descontando, é claro, a possibilidade de morrer afogada num desses alagamentos bizarros dessa cidade agressiva e feia.

São os votos sinceros de
Fernanda.

04/01/2010

Ponto-cruz

Minha avó paterna me ensinou poucas coisas. Dentre as coisas que ela tentou me ensinar estão pedir a bênção para os mais velhos, ser comportada e não desgrenhar o vestidinho, não tirar os sapatos na casa dos outros, ser obediente. Ela também tentou me tornar católica, me levar para o catecismo para poder estar preparada para - moça direita – casar na igreja, ser abençoada por Deus e pela Família. Não sei se por questão circunstancial, por ser naturalmente contestadora, por não acreditar em deus ou por duvidar que uma pessoa tão infeliz no casamento e com sua família, que engoliu sapos, bebedeira e tapas, que prostitui a liberdade em prol de um equilíbrio familiar-religioso pudesse me dar bons conselhos quanto às minhas escolhas amorosas e morais. A questão é tirar o leite de pedra - novamente não importando se o leite é amargo ou doce, nutritivo ou venenoso. Ou ainda: construir um castelo com as pedras que me atiraram, fazer da queda uma lição, etc etc etc.. (seria bom se frasezinhas assim realmente pudessem ser sanativos e band-aids eficientes).
Eu mencionei as coisas que minha avó tentou me ensinar e não conseguiu. Mas hoje, inconformada e magoada com injustiças consecutivas, lembrando que casada sob bênção de Deus – como deseja minha avó - ou sob a maldição e o desejo do ser humano, a união de duas pessoas é coisa linda e espinhosa, como um cacto . Rememorando a vontade dela de que eu fosse boa moça, lembrei também das coisas que eu de fato aprendi com ela: duas ou três receitas de bolos e doces infalíveis, o ponto básico do crochê, me limpar da frente para trás e só. Das coisas que intencionalmente ela me ensinou e que eu realmente aprendi, acho que foi isso, basicamente. Ocorreu-me que de mais importante que eu tenha aprendido com ela foi aquilo que ela não teve a intenção de me ensinar. Foi sobre o bordado em ponto-cruz. Na verdade eu sempre achei enfadonho fazer ponto-cruz porque era sempre sobre uma base já pronta, furada e previamente colorida onde a pessoa só precisava colocar a linha da cor certa, como manda o manual. Não era para mim nada muito diferente das minhas revistinhas de colorir, onde na folha esquerda tinha o desenho idêntico ao da folha direita, mas diferia apenas que na esquerda o desenho e as cores já estavam lá e na direita eu deveria pintar da mesma cor da folha posterior. Para mim ponto cruz e revistinha de colorir estavam no mesmo patamar de desinteresse; eu preferia muito mais desenho à mão livre e meleca com guache. Observando a destreza de minha avó, a paciência e os óculos na ponta do nariz era realmente impressionante como ela conseguia fazer todos os pontos do mesmo tamanho, com a mesma pressão e precisão da agulha, ainda que fosse depois de 4 horas daquele trabalho manual e inclusive apesar da artrite. Todos os pontos eram perfeitos, confeccionados no mesmo ritmo, sincronizados com a respiração, com o punho que subia e descia como o calcanhar de uma bailarina Bolshoi. Aquele bordado da minha avó era a perfeição em nome de artesanato. Apesar da perfeição na parte visível (na parte de cima) do bordado o que mais me chocava era que o verso, a parte de trás, a que vai ficar escondida sobre o móvel ou sobre a moldura, era igualmente, infalivelmente e incondicionalmente perfeito. Nenhum ponto em falso ou frouxo, nenhum nó visível, nenhuma cor fora do lugar, nada indicava a diferença entre o que se mostra e o que se esconde.
De certa maneira aquele bordado me influenciou no que concerne à transparência de uma pessoa, no zelo e no perfeccionismo advindo do prazer e não por esnobismo, exibicionismo ou por não conseguir viver imperfeitamente. O perfeccionismo dela vinha do prazer que ela tinha em bordar, em ter aquelas horas da tarde sem o inferno dos outros, do tempo, da dor da velhice. O perfeccionismo para ela, assim especulo, era o caminho para a paz, ainda que momentânea.
Obviamente não foram apenas as tardes olhando o ponto-cruz que me tornaram uma pessoa perfeccionista, zelosa e transparente, mas hoje me pergunto se alguém, além de mim e da minha avó algum dia já notou o verso do seu bordado. Nos últimos dias, tenho duvidado que alguém perceba o verso das minhas atitudes e aprove meu perfeccionismo, meu zelo e minha transparência. O que eu achava serem atributos se tornam um fardo difícil de arcar. Afinal, nos dias de hoje, o que vale é o artifício: faça o que for preciso para agradar, para ser perfeito por fora, para ser agradável, educada, amena, sorridente; vire-se, estoure-se, imploda-se, agüente, mas sorria. Não conteste, não pergunte, não grite, não chore, não mude, aceite. De que servem o zelo e a transparência num jogo social, onde o melhor é o melhor fingidor?
Aceite.
Porque o mundo olha mesmo é a parte de cima do bordado.

07/12/2009

Matemática temporal

sessenta e nove:
26+30=56 //atualmente
69-56=13 // tempo para resolver
26-12=14 // proteção e rancor
14+13=27 // silêncio inerte
27=+/- 26


setenta e seis:
76-26=50 // o quanto me resta do total
50-13=37 // tempo de culpa ou alívio, provavelmente imutável
76-(14+13+37)= +64 .: -64 //expectativa de sofrimento
76-64=12 // ruim, mas nas contas sai bem na foto
76-(-64)=138 //é só um gracejo...

coda:
-64 e seria infeliz.
+13 e seria tola
-13 e seria circunstancial; fruto do meio e da genética.


Entre a selvageria do imutável e a frieza do calculável, dizem que o sofrimento é opcional.
Que mentira.


http://noticias.uol.com.br/cotidiano/2009/12/01/ult5772u6435.jhtm


Na vida precisaríamos não de viver muito, mas de errar menos.

02/11/2009

Tempo suspenso e vaso.

Digito esta postagem com as mãos coloridas. Ontem me ocorreu de fazer algo despretensioso, que me ajudasse a passar aquele fim-de-tarde que é tedioso demais para não fazer nada, mas vadio demais para fazer alguma coisa. Como vem me ocorrendo a algum tempo, um bloqueio com ar de auto-sabotagem para fazer, tocar, pensar, falar e ouvir música deu o ar da desgraça. Zanzei pelo quarto de trabalho tentando me convencer que era dele que eu precisava e fracassei; arrastei as mãos pelo teclado do piano mas não me emancipei da vergonha para tocar; mudei de sala; liguei a televisão e me irritei com a imbecialização promovida em todos os canais; desliguei; fui à sacada do quarto de dormir e olhei o céu; enjoei; comi uma pêra, um chocolate, amendoins, tomei café, água, chá, peguei os ingredientes para fazer o bolo, desisti, guardei os ingredientes, comi um pão, outro chocolate e uma banana: tudo nesta ordem e sempre em pé, andando pela cozinha e ouvindo o relógio novo que palpita na parede perto da mesa. Escurecia e o pavor de não ter feito nada começava a arrebentar. Voltei para o quarto de dormir pronta para me entregar ao travesseiro e amargar; no criado-mudo o Montanha Mágica tombado, que me entretinha nas últimas 100 páginas, agora parecia tediantemente tóxico; o abajur não estava pronto para semear a pouca luz que leva ao sono e algum vento ainda morno se enfiava pela fresta da janela, indicando que ainda não era frio nem tarde o bastante para dormir. Levantei frustrada por nem mesmo ser capaz de dormir. Voltei para o quarto de trabalho. Olhei ao redor: livros, piano, computador, papéis rabiscados, pentagramas, lápis, restos de borracha e a lixeira cheia me encheram de pânico e sentei no chão, virada de costas para a mesa. Quis chorar. Quis arquitetar uma mudança de vida, um corte radical de cabelo, fazer a mochila e virar mendiga, ligar para a mãe, para a melhor amiga, tomar um porre, praticar algum esporte, praticar alguma maldade, praticar alguma bondade, viajar para uma floresta inóspita, ligar para as mães dos meus alunos e soltar toda a má-educação que oprimo quando me sacaneiam, quis quebrar alguma coisa, quis consertar a pia entupida, quis esmagar cada um dos meus dedos num grampeador para justificar minha letargia, minha falta de brio, minha incompetência de lidar com meus fracassos profissionais e emocionais, minha inabilidade para levantar depois de cair. Sentei no chão e nem chorar não consegui: não sei lamentar por alguém tão covarde e vaidoso.
A revista cuja capa figurava o político americano transcendental que todos acreditam ser o neo-cristo socioeconômico estava caída no chão. Peguei, arranquei a capa e enrolei em forma de canudinho. Achei que aquilo era suficientemente bom como remédio para o tédio de não fazer nada e suficientemente gratificante para a preguiça de fazer alguma coisa. Enrolei várias páginas em forma de canudinhos finos e compridos; enrolei uns nos outros, colei. Virou uma roda. O que fazer com isso? Preciso de um vaso para a mesa da sala-de-jantar...Eu não sei fazer um vaso, nunca fiz. Vou tentar e ver no que vai dar. Não vai dar em nada isso aqui...

Deu num vaso. Meu primeiro vaso! Enquanto fazia não tive vergonha de fazer, não esperei que fosse um vaso bom, nem bonito, nem útil, nem exótico, nem "geniaaaal"; não queria dá-lo para ninguém, não quis mostrá-lo para ninguém, não quis que ninguém gostasse dele e especialmente: não quis destrui-lo quando acabei. Tive prazer e só. Fui absorvida por fazer alguma coisa que verdadeiramente não queria dizer nada, que não tinha pretensão, que ia existindo só porque eu queria e não porque eu achasse necessário. A questão era fazer porque eu queria e não porque eu precisava. Lembrei que alguns anos atrás eu sentia isso todos os dias, mesmo que por poucas horas: eu tocava piano porque eu gostava, eu compunha porque tinha vontade, eu lia porque achava legal e não para me distrair ou me informar, eu ouvia música porque sabia que era viagem garantida e não para "conhecer" - como quem arrogantemente pretende conhecer caviar para poder arrotá-lo e demonstrar a experiência. A música e tudo relacionado a ela me davam prazer. Por isso desejei fazer música para o resto da vida.
Quando foi que fazer isso deixou de ser prazeroso para se tornar num fardo recheado de vaidade, pretensão, responsabilidade, cobrança e medo? Quanto tempo levou, foi gradual, foi repentino, teve um motivo, tiveram vários motivos, eu escolhi?
Obviamente meu vaso de papel-revista não é miraculoso o suficiente para dar respostas {eu tenho birra intravenosa, sincera e convicta de quando acham que uma "coisinha" pode ser a chave de todos os mistérios [como um livro de auto-ajuda, uma ida à igreja ou ao templo, ou um puxa-estiga de ioga, uma droguinha, uma perversão sexual ou uma viagem etc. (é como aquela frase cheia de pseudo-benevolência que é pura sacanagem e inutilidade que o Mestre dos Magos sempre diz para algum dos personagens bonzinhos e desesperados da Caverna do Dragão)]. GRRR!!!!}.
Assim, sentir prazer e suspender a responsabilidade sem auto-flagelo também não vai transformar as idéias em música materializada no papel ou no som.
Mas lembrei como é deixar que as horas passem sem me preocupar se o que estou fazendo é bom ou útil. Ontem eu lembrei que o tempo do prazer é suspenso e que eu ainda sei fazer meu tempo parar. Seja fazendo um vaso para depois pintá-lo, seja escrevendo para leitores anônimos ou inexistentes.

Coda:
Não resolvi nada sobre a música, nem sobre a minha neurose de futuro ou minha covardia para levantar, embora eu usufrua de certa leveza, ainda que temporária, para não pensar nos problemas mesmo que não esteja alienada em relação a eles.
Mas estou satisfeita: minha mesa da sala de jantar agora tem um vaso.

18/09/2009

Nota mental:

não se mutile cortando sozinha sua franja; pode ficar REALMENTE horrível.
É para isso que servem as unhas...

11/09/2009

ircâncer

Semana passada aprendi:
que o novo nome para test-drive é workshop;
que o imperialismo faz parte do gene do francês e
que é remendando que se faz música chata.

18/07/2009

Formigas-humanas

No chão jazem as flores, os frutos maduros e as fezes. Do chão percebe-se as solas agressivas das pessoas e os restos que caem e são insignificantes o suficiente para não serem pegos de volta.
Do chão também se vê a formiga. Pequena, eficiente, ágil e aparentemente insensível, ela é forte o bastante para carregar 40 vezes a seu próprio peso.
Mas mesmo assim ela morre quando um lazarento a esmaga com o dedinho.
É por essa e por outras que eu não acho que a natureza seja surpreendente. Especialmente a humana.

09/07/2009

Leprosos virtuais

Com este princípio de pneumonia que me acomete, o que há de mais próximo de mim, fora o vírus que já se confunde com minha própria pessoa, são os lenços, o termômetro e o anti-térmico. Nem mãe, nem namorado, nem amigo, nem o sol da pracinha, nem a confusão das escovas de dente. Nada é passível de interagir comigo, além dos já mencionados colegas Softy´s, Terumo e Dipirona (tanta intimidade pede pelo nome). Por vezes tento fazer coisas normais, como pegar a panela com comida e servir outras pessoas, ou colocar os talheres de outras pessoas à mesa, dar um abraço ou pegar a mão... mas sinto o gelo terrível de um olhar que teme o contágio e induz a largar imeditamente a panela, o talher, o braço e o abraço. É uma doença, eu concordo.

Claro que estou melodramática, já que há 7 dias tudo o que faço é dormir, tossir e tomar remédios, ver o outro ser da minha casa usando máscara 24h por dia e ter a sensação que faz uma semana que só gasto energia do planeta sem oferecer nada de bom ou útil em troca, isso acrescido ao fato de eu não ter nenhum contato não-virtual com a humanidade. Mas isto me lembrou alguns fatos meio tristes, que vivi na infância e que agora se transformam num dilema que pretendo resolver coerentemente no prazo de 15 anos (que é o tempo que eu ainda posso ser mãe, ou não).

Uma vez, no supermercado, vinha descendo um homem que andava difícil, bem difícil, com uma muleta diferente, de ferro e ponta de borracha preta que só usava em um braço. Fiquei atônita olhando para ele, olhando bem olhado, cada movimento, cada repetição de movimento, o suor, o tipo de listra verde clara da blusa, o sapato gasto, o pescoço estressado, as veias salientes das mãos, o raspar da muleta no asfalto da descida... tudo bem olhado. Eu nunca tinha visto ninguém daquele jeito antes. De repente pliiiiiiiiiiiiiiif e aquele beliscão de braço ardiiiiiiiido, irritante, daqueles que inspiram a cólera mais violenta na criança e faz com que ela comece a entender na prática o significado da palavra ódio. O beliscão da minha mãe quis dizer "pare de olhar para o doente". Depois ela me explicou que era feio olhar pra gente que tinha problema porque a pessoa ficava com vergonha por ser diferente. Logo, o jeito era "minimizar" a diferença pela indiferença.
Acho que algo muito parecido acontece com os idosos: eles vão envelhecendo, perdendo o vigor físico, ficam cada vez mais tempo sentados, falam cada vez menos, se esquecem cada vez mais, as dores aumentam e a indiferença dos parentes também aumenta. Os parentes vão tratando o vô e a vó como se fossem uma mobília da casa, ou uma coisa que sempre esteve lá do mesmo jeito. Eu tremo de pavor ao imaginar que um dia minha filha e minha neta vão se esquecendo que eu, além de velha, sou e fui gente como elas. E eu tremo duas vezes mais forte de pavor ao imaginar que eu um dia esqueço disso na velhice da minha mãe. Vou ter de desaprender o que ela ensinou: fazer de conta que você não repara uma deficiência e se tornar indiferente às diferenças.
Ah, sim. Isso tudo porque me senti, durante a pneumoniazinha que me acamou por 8 dias, como um móvel velho, empoeirado, inútil e repulsivo.
Eu, altamente contagiante e periculosa, fui e voltei na sensação do abandono e repulsão que sente de um manco, um velhinho ou um leproso, e me magoei.


Mas tudo bem. Hoje já parei de tossir e de me relacionar com o termômetro. E sei que vou pintar meu cabelo de rosa-choque com verde-fosforescente assim que chegar aos 70. Quero ver quem é que não vai me ver na velhice... Se precisar, bem velhinha, eu danço funk pelada na sala também. Ao funk e à nudez ninguém é indiferente.





26/06/2009

João-bobo

Paft! para direita e lá vai o joão-bobo para direita; BUM! para frente e lá vai o joão-bobo para frente. Acho que é por isso que todo mundo chama o coitado de joão-bobo: porque ele sempre obedece. Mas talvez não; talvez ele seja joão-bobo porque ele sempre volta para o lugar onde se ferrou - e possivelmente vai se ferrar de novo. Neste caso, ele é bobo tanto porque vai submissamente para onde o soco manda, quanto porque volta idiotamente para o mesmo lugar onde fora socado e voltará a ser socado.

Mas hoje me ocorreu que joão-bobo de bobo não tem nada.
João é um rebelde, é da resistência. Não fica parado depois de apanhar, não é desses que toma um baque e fica caído, jogado para onde fora mandado, ou que, por sofrer, muda o caráter e aprende como desgraçar alguém com técnica, classe e uma forte dose de falsidade.
O joão bobo volta com o mesmo caráter. Ele volta com a mesma força com que apanhou e para o mesmo lugar, desafiando. João resiste.
Ele insinua: "Vai, bate. Bate com toda a tua força". E você bate: mostra o pior de si para joão.
Pois que joão volta rápido, firme, rindo, mostrando que não doeu e que toda a tua ira e todo teu mau caráter não mudam nada. Você fica constrangido por tamanha frieza, de bater num bicho quieto.
E João continua sorrindo.
Apesar de você. Apesar de tudo.
Isto é equilíbrio. Alinhar à direita

15/05/2009

Deixa de ser banana, pô!

Eu, você, uns amigos e familiares trabalhamos.
Nós fizemos uma vaquinha e conversamos com Zé:
- Olha, Zé, esse mês vamos fazer uma coisa diferente: já que você não sabe cozinhar, não tem força para levantar tijolo, não tá afim de fazer arte, não sabe ensinar, não consegue curar ninguém, nem inventar nada de bom, nem pensar muito bem, vamos te dar um trabalho. É jogo rápido, tarefa simples. Fizemos uma vaquinha aqui entre nós e vamos dar 37% do nosso salário para você fazer o seguinte: pagar a escola da molecada, o hospital, a prestação das nossas casas, os bilhetes para a gente assistir uma apresentação no teatro, para pagar o cara que limpa o chão, o que carimba papel, o que apaga fogo e o que pega bandido. Pode ser assim?
- Pode, claro. Prometo que vou fazer o melhor de mim.
- Não tem o melhor de si para fazer. É só fazer o que tem de ser feito.
- Tudo bem.
- Damos 37% do nosso dinheiro para você e você paga o que tem de ser pago. Entendido?
- Entendido.
- Então é isso. Toma a grana, pague o que tem de ser pago e vamos te dar um salário bom, uma roupa boa e transporte para vc ir para os lugares resolver essas coisas.
- Ótimo.

Agora imagine que nós todos os meses passamos a dar a grana para o Zé. Mas de repente vemos o Zé passeando de carro novo, caro. Seguimos o Zé até a sua nova casa, que é enorme, cara, num bairro chique. O Zé agora tem uma namorada bonita e para agradá-la paga uma viagem para ela e para a sogra para que passeiem por Paris, fiquem num hotel bacana, comprem roupas novas... O próprio Zé agora se veste com roupas luxuosas, viaja bastante, faz compras em supermercados caros, come em restaurantes caros...
Em contrapartida, percebemos que a escola da molecada está cada vez mais caída, que os hospitais não conseguem atender a gente direito, que vieram bater em nossa porta dizendo que a casa não é mais nossa, que outros colegas já caíram em desgraça e passaram a mendigar e passar fome, que já não têm mais como pagar tudo o que tem de ser pago e ainda sobreviver.
Não, o Zé não ganhou na megasena acumulada. O Zé roubou nosso dinheiro. Ele pegou nossos 37% de salário e comprou casa, carro, viagens, mulheres, roupas, luxo.

Nós sentimos que a vida se tornou insuportável. Percebemos que os nossos direitos não estavam mais sendo respeitados e que tínhamos apenas obrigações.
Mas não sabíamos mais por que a vida estava piorando. Fomos nos acostumando com a escola ruim, o hospital decadente, a falta de teto e de respeito. Fomos nos tornando fracos, medrosos, mesquinhos e covardes. Quando víamos o Zé passar com o carrão, sorríamos para ele e acenávamos com admiração no olhar "ah, se um dia eu ficasse assim...".

Nunca mais ninguém lembrou do dinheiro que dava para o Zé todo mês, embora todo o mês todo mundo desse 37% do salário para o Zé.
Nunca mais ninguém lembrou que o Zé trabalhava para o pessoal que fez a vaquinha e que o dinheiro que deveria pagar as contas de todos estava pagando a conta só do Zé.
Nós deixamos de perceber que os direitos ainda existiam, mas não estavam sendo atendidos.
A gente esqueceu que o Zé trabalha pra gente; O Zé é nosso funcionário e como qualquer funcionário, que deixa de funcionar, deve ser mandado embora.
A gente não conseguia ver o Zé todo milionário e bacana como o bandido que roubou nosso dinheiro; a gente não queria que ele devolvesse nosso dinheiro e fosse preso. A gente esqueceu o que é justiça e que bandido vai pra cadeia.

A gente esqueceu tudo, até o que é gente.



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A população brasileira gasta 37% do seu salário pagando impostos.
Os cofres públicos do Brasil ganham POR SEGUNDO R$33. 409,87 (mais de um 2 milhões de reais por minuto).
A arrecadação do ano passado foi de R$1,056 trilhão (1 TRILHÃO, porra!!!)
Deste 1 trilhão de reais só 68% foi investido.
Ou seja, 32% do nosso dinheiro foi desviado para não se sabe onde, não se sabe quem.
Quer dizer que no ano passado R$ 337.920 bilhões foram roubados da gente.
Isto também quer dizer que por dia os brasileiros são roubados em mais de R$5 milhões.


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Vamos dormir mal hoje.
Amanhã a gente acorda com raiva e começa a fazer alguma coisa.

12/05/2009

Um "auto bom dia".

Hoje é terça e obviamente é um dia fracassado para começar alguma coisa nova.
O dia universal de começar coisas é, como todos sabem bem sabido, a segunda-feira: dieta, corrida, estudar, parar de fumar, reciclar o lixo, aguar as plantas, começar um diário, uma música, uma faxina, uma arrumação, uma mudança... Fico tão ansiosa às segundas-feiras que só consigo pensar em tudo aquilo que eu não consegui fazer - na segunda-feira, nas segundas-feiras e na vida toda.
Portanto hoje, teça-feira, eu me enganei de propósito. Normalmente eu diria que estou atrasada um dia (ONTEM foi segunda-feira!) e que não vale a pena começar nada, que é melhor esperar a próxima segunda-feira. Mas hoje estou contente porque na real acho que estou adiantada seis dias.
Acordei cedo, tomei banho, penteei o cabelo com a mão esquerda (para amenizar meu futuro Alzheimer), fiz aquelas coisas chatas de mulher (depilar, hidratar, proteção solar, blabla) arrumei meu ninho de trabalho e fui correr na praça. Comi coisas saudáveis, fiz faxina nos meus dois e-mails, estudei inglês, toquei piano, compus, li, ri, chorei, respirei bem respirado pelo menos 3 vezes.

Este post não é por nada, não.
Daqui fica apenas que lembrar de si é importante e que as terças-feiras não devem ser menosprezadas.

02/05/2009

Um minuto de silêncio por uma morte de decepção.

Um silêncio morno e já sem contestação destituiu o sorriso e desbancou as palavras.

Palavras são ornamentos desesperados para amortecer a crueza do que não pode ser mudado.
Palavras de variadas densidades, formatos e texturas, concatenadas e precisamente manipuladas, formam todo um complexo crível à priori, mas incrível quando submetidas ao silêncio dos fatos.
Todas as palavras desejam desde sempre ser tão importantes quanto a própria realidade, muito embora nunca consigam ser bem sucedidas. Pela frustração do insucesso, as palavras se aprimoram e se tornam gracejos, dubiedades, persuasão, sedução, drama. Apesar da sofisticação, as palavras não são nada, senão o desejo frustrado de serem tão poderosas quanto os fatos. Estes são soberanos.


Cor-de-rosa é só o giz de cera com o qual pintamos os sonhos, com o qual nos enganamos.
Diferente dos sonhos, a vida é em preto e branco, preto no branco, fatos sobre fatos.














































































"Silêncio... é madrugada."














20/04/2009

Miopia

Às vezes a gente perde coisas importantes de propósito.
Na verdade, nem sempre o propósito existe concretamente, mas existe a vontade de perder, sem pensar nas conseqüências da perda ou se os motivos que nos fazem perder coisas importantes são maiores do que as coisas importantes em si.

Na quarta série minha mãe me levou ao oftalmologista; descobrimos que eu tinha de usar óculos. Nada grave, uma miopiazinha leve, meio grau em cada olho e tudo resolvido. Usar por um ano, voltar ao oftalmologista e ver se a coisa ficava por aí ou aumentava o grau.
Fomos comprar os malditos óculos. Eu queria um óculos igual ao do meu pai: daqueles antigões, grandes, retos em cima e redondo em baixo, aro fino e parecendo oncinha, meio amarelo meio marrom as duas cores mescladas. Não, não, nada disso: me deram uns óculos modernos, pequenos, totalmente redondos, grossos, roxo e branco transparente. Era daqueles óculos de crianças coitadinhas mas bonitinhas. Pelo menos era assim que eu achava. Ninguém perguntou se eu queria que os óculos fossem daquele jeito, assim como nunca ninguém pergunta pra gente se a gente aceita a merda toda ou só a parte boa. Mas enfim, voltei com o estojinho dos óculos para casa, segurando nas mãos e não nas orelhas.
Eu era obrigada a ir pra escola com aquilo, que era além de ridículo, muito pesado e apertado. Eu ficava com dor de cabeça porque os óculos me apertavam as têmporas e marcavam o meu nariz. Cheguei a reclamar para o meu pai (e com ele porque ele usava óculos e me entenderia; minha mãe não usava óculos e era mandona): "Tá doendo aqui, ó... porque é muito apertado e pesado. Eu também não consigo enxergar direito com eles... tenho que ficar olhando por cima dos óculos o tempo todo". Eu não estava acostumada a enxergar tão bem, com tanta nitidez e aquilo me incomodava. Meu pai disse que eu ia acostumar e ponto. Claro que nem só a dor de cabeça, a feiúra do óculos e o incômodo de enxergar como eu nunca tinha enxergadoantes eram suficientes para eu não querer usar óculos. O paquerinha não iria achar bonito aquelas duas bolotas transparentes, roxas e brancas dependuradas na minha cara. Além disso, nenhuma outra menina da sala usava óculos e eu já era motivo de piada por ser "japonesa".
Tentei explicar para o meu pai o que se passava. Ele terminou com "você vai se acostumar" e ponto. Pois então ponto. Eu não ia me acostumar coisa nenhuma e eu não queria quebrar, porque se eu quebrasse iam consertar e me fazer andar com aquelas cordinhas horríveis que não deixam os óculos caírem porque ficam presos ao pescoço. "Então vou perder"; e perdi na escola, debaixo de uma outra carteira que não era a que eu sentava. O coração espancava lá dentro e pulava pela boca, os dedos ficaram gelados de susto porque eu sabia que estava fazendo merda.
Fiquei assim tremeliquenta por uns 3 dias. No quarto dia eu disse pra minha mãe que perdi os óculos, mas que ia procurar nos "achados & perdidos" da escola, sem falta. E curiosamente eu sempre esquecia de ir lá....... Não sei se a rinite/asma/bronquite/alergia do meu irmão me salvaram, mas minha mãe esqueceu totalmente daqueles malditos óculos. A bola da vez era meu irmão e a missão impossível era se livrar dos bichinhos de pelúcia, das roupinhas de lã e do carpete de casa. A doideira ali era tamanha que ninguém se deu conta que eu nunca usei óculos. Ainda bem.

Eu perdi de propósito os óculos. Meus propósitos não eram melhores do que sarar da miopia, mas mesmo assim, eu achei mais fácil perder o chato importante do que ganhar o saudável a longo prazo.
Mas é assim mesmo: às vezes a gente quer se livrar das coisas difíceis, mesmo sabendo que elas são importantes. Às vezes a gente não quer saber do que é importante, a gente só quer saber da gente.

Eu nunca mais achei meus óculos e nunca mais vou achar. Eles me rejeitaram e me deixaram com uma baita miopia. Mas entender meus propósitos de perda já me faz menos míope. Agora só faltam os óculos para as outras miopias.

17/04/2009

Limite

O que fazer com aqueles dias que subtraímos do total da vida 24 horas de possível felicidade?
Claro que nunca ninguém disse que seria fácil e, ainda bem: o ser humano ainda não é tão mentiroso assim. Mas também ninguém disse que o suposto impossível seria alcançado várias vezes e os limites se tornariam cada vez mais largos, ao ponto de você se perder e nunca mais conseguir achar as beiradas do limite, que expande, expande, expande ao ponto de você não saber mais até onde deve continuar ou parar.
Limite é a questão.
Como você sabe onde começa o seu limite? Eu gostaria de ter um painel no meio da testa, onde uma luzinha começaria a piscar quando o meu limite tivesse sido alcançado, como acontece com o carro quando a gasolina está acabando. Eu gostaria de ter neste painel, como no painel do carro, outras luzinhas: uma que indicasse quando estou terminantemente triste para que alguém viesse com apenas 3 dedos da mão menos inteligente (normalmente a esquerda) e fizesse um cafuné, que durasse nem que fosse 20 segundos tranqüilos; outra que piscasse para indicar quando estou doente e quando esta luzinha piscasse alguém chegaria perto de mim e perguntaria se eu quero uma pastilha pra garganta; e outra para indicar "quer e precisa de silêncio e privacidade sem culpa".

É por isso que as coisas para mim não dão muito certo: eu quero coisas difíceis.

08/04/2009

Batian

Quando eu era pequena e estudava na Pipoca & Sapeca, eu ganhava arroz doce cor-de-rosa da minha batiam. Era assim: eu saía da escola e do lado tinha uma doceriazinha, minha batiam me dava um saquinho comprido de uns 25cm, cheio daquele arroz doce sequinho, tipo japonês, bem cor-de-rosa, eu balançava a cabeça com vergonha "não precisa não, batian...", morrendo de medo da minha mãe brigar comigo quando eu chegasse em casa pois as pontas dos meus dedos cor-de-rosa, mistura de corante e baba, iam fatidicamente me entregar. Corante para mim era um veneno, eu era alérgica. Hoje passou. E era sempre assim. Eu sempre ganhava aquele doce proibido da batian, quando era ela e não a minha mãe que ia me buscar na escola.

Com ela eu aprendi a gostar de uva tipo Itália, aquela verde e azeda que estala na boca quando morde e tem sementes enormes, que nenhuma criança gosta. Mas a gente ia na feira de domingo, comprava uns 30 pastéis para toda a tchurma, caldo de cana e, para mim e só para mim, um cachinho de uva Itália. Dos netos da Fuyuka eu sempre fui a mais bobona e certinha; minha mãe era brava: não podia sujar a roupa, correr pela casa da batian, sentar no sofá caso tivesse gente mais velha de pé, nem pedir doces ou brinquedos. Os meus primos eram mais malacos e também mais velhos e por isso quando alguém gritava em forma de convite: "quem quer ir pra feira com a Batian?", meus primos saíam meio de ladinho, quietinhos porque não queriam ir pra feira, ser esmagado por um monte de gente e carrinhos, ouvir grito de feirante, nem carregar peso na volta. E como eu era bobona e de-ses-pe-ra-da para sair de casa, eu sempre gritava "eu quero! eu quero! eu vou com a batian!", e saía com ela, pulando feito um cachorrinho alegre. A gente subia a ladeira da casa dela conversando: "Batian não estudou, é burra... turabalhou na roça, vida dura... você estudá bastante, fazê liçon, obedecê mamãe, estudá bastante, lê lívoro e ficá fórute". Eu continuava subindo a rua, puxando a batian pela mão, querendo ir mais rápido porque eu mal via a hora de chegar na pastelaria e pedir eu mesma, com jeito de adulta esperta, todos os sabores variados para os 30 pastéis! Mas eu ouvia o que ela dizia. Eu ouvi tudo com sinceridade e peito aberto, sem achar aquilo chato ou bravo, eu olhava para aqueles olhinhos já azulados do tempo e via que aquilo era importante, coisa para ouvir, sentir, entender; eu gravei todas as rugas daquele rosto e sentia na palma da minha mão todos os calos daquela mão que me levava. Eu entendi. Sem raiva, sem feminismo, sem medo, sem pressão, sem recompensa. Estudar era a melhor coisa para se fazer! Sabe, ouvir isso da minha avó era bem diferente de ouvir da minha mãe, porque a batian não queria se realizar em mim e não tinha medo de fracassar como mãe: ela só queria que eu não sofresse como ela.
Minha avó também ia lavar roupa nos fundos da casa. Ela ia bem quietinha, esfregava a roupa com calma, devagar, a torneira soltava pouca água. Ela cantava coisas em japonês que até hoje eu não sei o que queriam dizer, mas do que me lembro, era triste. Enquanto isso eu ficava catando as formigas no chão, fugindo das minhocas da terra, quebrando os espinhos da babosa do ditian e me perguntava porque batian não joga a casca do ovo no lixo, ao invés de jogar na planta?, porque ela prende o Sheik no banheirinho mesmo sabendo que ele bebe água da privada? E boa parte da tarde passava assim... sem conversa, sem aquelas toneladas de perguntas chatas que eu fazia quando era criança, sem brinquedo e em paz.
Uma vez, eu já era mais velha, minha batian veio na casa da minha mãe e como ela sempre fazia, trouxe um monte de coisas de comer, dentre elas aquele doce de feijão que até hoje eu adoro. Ela sempre fazia isso quando visitava a gente. Naquele dia ela usava aquele vestido azul/verde eterno com um alfinete amarelo espetado e eu fiz com que ela se sentasse na sala de jantar e me ouvisse tocar piano. Eu tentei tocar para ela a música que ela cantava enquanto lavava roupa. Mas ela não lembrou, não percebeu que era a mesma música porque eu tinha feito um arranjo todo complicado para impressioná-la. Deu que ela não entendeu nada: nem que era complicado e difícil para a criança tocar, nem que a criança inventou o arranjo sozinha, nem que era a música que ela cantava quando lavava roupa, nem que era uma homenagem para ela. Naquele dia, eu fui levá-la de volta para a casa dela. Fomos andando pelo caminho mais curto, por minha idéia. O caminho era mais curto porque não era preciso contornar o riozinho sujo; era só passar pela ponte sobre ele, improvisada pelas crianças da rua. A ponte era muito emocionante: as tábuas eram finas, irregulares pregadas muito toscamente, balançavam e estalavam quando a gente pisava, e no final não tinha rampa para voltar ao solo e era preciso dar um pulo para sair da ponte e chegar no chão. Depois da ponte ainda tinha uma bruta ladeira , na terra, subindo por degrauzinhos forjados pelos tênis das crianças que gostavam de brincar de subir o morro. A ladeira sim era um perigo! Se você não subisse correndo e não pegasse o "embalo", então você precisaria ir se agarrando nos raminhos do chão para não escorregar e cair. Eu achava aquele caminho o máximo! Muito mais legal do que o outro! E passamos nós duas pela ponte, primeiro ela, depois eu. Ela andava devagarinho e ia dizendo "gatchan-gatchan, gatchan-gatchan" porque a ponte balançava. No final da ponte, eu pulei primeiro no chão e dei a mão para ela segurar-se em mim e pular também. Agora o desafio era subir a montanha! Eu subi correndo para ela ver como é que se fazia e como eu era boa naquilo. Quando eu cheguei no topo da montanha, percebi que ela ainda estava lá embaixo e não tinha vindo correndo também. Eu desci correndo para ver o que tinha acontecido e percebi que ela tentava subir se agarrando nos raminhos do chão. De repente fiquei triste por ela e me senti mal instantaneamente por tê-la feito vir pelo caminho mais legal para mim, mas pior para ela. Acho que foi só nesse dia que eu percebi que o corpo das pessoas vai ficando menos forte e menos rápido conforme o tempo vai passando. Foi muito triste ver a cara de susto e força que ela fazia. Eu decidi que eu ia empurrar a bunda dela enquanto ela subia, assim seria mais fácil e ela não tombaria para trás. Para mim foi um sufoco porque ela tinha um bundão bem pesado e ela era toda bem pesada. Mas a gente conseguiu chegar! No final do morro ela ficou uns bons minutos parada, respirando ofegante, mas depois riu. Ela riu muito e aquela barrigona toda balançava com todo o corpo e todo o rosto sorria. Eu me senti tão aliviada!

Faz cinco dias que a minha batian chegou no topo da montanha mais alta do mundo.
Foi o caminho mais doloroso que eu já presenciei. Ela chegou, guerreando silenciosamente contra o tempo e contra os mais diversos tipos de dor.
Mas o final da montanha chegou.

Obrigada por tudo, cor-de-rosa ou invisível.
Eu vou sempre lembrar de você, batian.

A gente se vê quando a minha montanha acabar.

23/03/2009

Formatura

Amanhã é colação de grau.
Vai ser um saco, realmente.

Um burocrata me entrega um papel, um aluno mala faz um discurso, alguns professores picaretas são homenageados e uma certa quantidade de alunos recebe diplomas e aplausos.
Grande merda.

Para piorar, não vou poder usar um sapato confortável, vou ter de pintar a cara e aguardar duas longuíssimas horas dentro de um vestido "esporte fino", por um propósito que certamente não vale o esforço de aguentar o salto alto nem a poeira da sombra ou a fagulha do rímel irritando meus olhos. Neste ambiente também não se pode roer unhas, acabar os Irmãos Karamazóv quietinho, nem bufar. Isso eu pressinto.

Enquanto aquele monte de gente vai sendo chamada e aquele monte de parente babão se comove com a formatura do filho, provavelmente vou estar com aquela senhora cara de bunda, me implodindo em críticas infindas sobre o meu curso, meus professores, meus colegas, a burocracia universitária que confina a arte à teoria e que torna a prática musical numa punhetação de escalas afinadas, de repertório que promova um bom status, bastante velocidade para impressionar, e, claro: aquele discursinho afiado na língua. Um discursinho com colagens de citações diversas regurgitadas sem filtro e sem critério, daqueles filósofos ou musicólogos de sempre, com todos os preconceitos e ransos que vem de brinde com algumas aulas e alguns professores. Tanto texto, tanto argumento, tantas traquitanas sociais, tanto protocolo de relacionamento, tanta máfia de supostos poderes para esconder uma realidade bizarra: ali, música é a última coisa que se faz. Quando é feita.

Portanto, não há nada a ser comemorado; aquela celebração é o lacre na minha boca que comprova que eu girei com a máquina e não fiz nada para mudá-la. Nada além de me proteger individualmente e não me permitir corromper.

O único deleite nisto tudo é: hoje em dia eu tenho MUITO mais prazer em fazer música do que nos últimos 6 anos e 6 meses. E isso não é amadurecimento: é sair do cárcere e não estar sujeito aos humores ou politicagem de uma estrutura colada com muita lábia e muita merda.

E sim, cuspa no prato em que comeu.
Especialmente se a comida que te deram estava envenenada.

16/03/2009

BUM!

Como estou sem tempo e o deadline está pela hora da morte, só palavras soltas:

toneladas invisíveis
borboleta insone
prefeitura de são paulo, órgo, não posso fazer nada a respeito
igreja, música, eletricidade, domingo, surdez, surto
"Um dia de fúria", "Brazil", martelo
casais, casamento, camiseta, game over, velhinhos, hábito, eu?
abnegação, martirização, falta de coragem, masoquismo ou medo do inferno?
1/4 de século, creme anti-age, varizes, maquiagem, saem as espinhas entram as rugas, e o que mais ainda vai ser derrubado pela gravidade?

Depois do dia 20 eu desenvolvo ou esqueço.
Por hora, meu saco beira a explosão.
Mavamolánémêsm?

10/03/2009

Nonsense particular

sem sentido particular
girafas ainda sentem frio
ovelhas ainda sentem calor
terças paralelas
nove horas
macarrão quatro queijos
que incrível você separar uma coisa da outra
golf
Nic
Milton
laranja
azul
metrô submarino
cartão
roxo
51dp
surto
caolho
catarro
uruguaio
liberdade
drummond
árvore
noite
flauta doce
crueldade
desmaio
estúdio
guarda
vergonha
posto de gasolina
diversão
cadarço
câmbio
incrível
manolo
concha
chitara
garagem
quentão
tequila

avião
cu não sabe ler
dó sustenido menor
desenho
ventilador
berg
pizza
piscina
pica-pau
esponja
privada quebrada
prato de porcelana
origami
bolo de abacaxi
indiferença
invasão
agressão
desespero
noitão
municipal
celular
chop
natal
nariz
baú
boi
pedra
pão de queijo
café
borboleta
estacionamento
every little thing
faca
moto
aniversário
setembro
sirene
sangue
inflexível
impossível
independência
praia
fogos
erro
arcar
french toast
nojo
consequência
coceira
portão
presa
empurrar
triste
quebrou
pessoa
primeiro
certa
hora
antecipada
atrasado
expurgo
inútil
eterno
enterrro
vivo
passado.

25/02/2009

Demanda por produtos faz com que alguns homens assassinem outros.

Eu vendo móveis.
Um dia, vi que vender móveis era muito lucrativo!
Só que vendi todos os móveis da minha casa. Então, eu precisei ir na casa de outra pessoa porque essa outra pessoa tem o que eu quero, e o que eu quero vai me render muuuuito dinheiro.
Eu vou na sua casa.
Entro com uma serra elétrica, serro seus portões, suas portas, chego no interior da sua casa com meus capangas, destruo tudo: queimo sua comida, quebro todos os seus pertences (televisão, geladeira, microondas, sofá, cama e até o seu computador), tiro seu celular, seu carro, destruo tudo o que é seu. Enquanto você corre para chamar a polícia, eu vou invadindo a sua casa, jogando tudo o que é seu, roubando seus móveis e transformando a sua casa numa loja que vende móveis. Isso porque você tem o que eu preciso e a minha necessidade certamente vale mais do que a sua pessoa.
Aproveito e vou trazendo outros móveis para vender, e sua casa fica irreconhecível. Você já não conseguiria mais morar lá.
Enquanto isso, você corre e chega na polícia. Lá, ninguém fala a sua língua! Você não consegue explicar o que aconteceu, ninguém te entende e você parece louco. A polícia, entendendo que seu caso é uma particularidade, te joga numa outra casa, onde muitas pessoas falam línguas diferentes e provavelmente também foram consideradas loucas, assim como você foi considerado louco.
E aí você passa o resto da sua vida lá. E morre.

Agora, troque a palavra VOCÊ por ÍNDIOS, a palavra EU por MADEIREIROS e PRODUTORES DE ETANOL, a palavra CASA por ALDEIA, a palavra POLÍCIA por FUNAI.


E arranque seus olhos fora, com colher de cafezinho, se você não consegue ver importância em respeitar os povos indígenas. Arranque fora porque você já é cego de qualquer maneira.


Eis a notícia:
http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/elpais/2009/02/25/ult581u3067.jhtm



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24/02/2009

Schubert

Eu não gosto de Schubert.
Não gosto, nunca gostei, mas não tenho raiva de quem goste.
Pelo contrário.

Meus motivos são os mais gritantemente óbvios, afinal, Schubert tem aquelas melodias bobamente simétricas, aqueles acompanhamentos de sempre, aqueles truquinhos dramáticos de sempre, aqueles crescendi-subito piano de sempre, aquelas quadraturas sempre iguais, e repete, repete, repete, meu nego. Eu nem música não consigo ouvir nisso, de tão irritada que fico com tanta repetição. Tanta aversão se intensifica hediondamente nos lied, pois os cantores cantam cada nota como se elas sofressem de mal de parkinson: ficam tremendo as coitadas, oitavo de tom acima, oitavo de tom abaixo, oitavo de tom acima, oitavo de tom abaixo... Eu, com estes tímpanos melindrosos e essa cabecinha alvoroçada e inquieta, não consigo ouvir Schubert.
Para não ofender um "gênio da música clássica", vou dizer, entre os dentes, que a culpa por eu não gostar de Schubert é minha, e não dele. (entre os dentes... entre os dentes!)

Hoje pela manhã, enquanto eu num quarto compunha e Bernardo no outro ouvia Schubert (um lied!), nem percebi que não fiquei irritada com a música. Acho que de tanto estar presente na rotina de Bernardo, já entendi que em muitas manhãs Schubert se faz necessário para ele, tanto quanto as minhas unhas são necessárias para os meus dentes. E hoje pela manhã, uma manhã difícil por outros motivos, ouvi Schubert com outros ouvidos, com os ouvidos de quem entende que às vezes Schubert é necessário. E aí, não ouvi música como eu ouço; eu ouvi música como alguém ouve. E isso nunca tinha acontecido antes, de me colocar no lugar de outra pessoa e ouvir como ela ouve.
Bobagem: eu não posso ouvir como outra pessoa ouve; posso apenas simular, em mim, o prazer ou o alívio que outra pessoa sente ao ouvir qualquer música.

Hoje, se alguém me jogar num pagodão, eu canto!




20/02/2009

Rita Apoena.

Sabe, eu ando muito armada.
Me informo, leio as notícias, conheço filmes, livros, lugares, pessoas, músicas, situações, regras, leis, certos, errados. Eu sou centrada e tenho um punhado bem fechado de certezas e idéias.
E se eu fosse só isso, eu não teria motivo para me surpreender com nada, nem ninguém. O que normalmente acontece de fato. Eu praticamente nunca me surpreendo; ou eu fico perplexa e reclamona/revoltada ou fico tão feliz que as têmporas doem, bem como as bochechas esticadas.
É isso. Eu sou simples até. Me imaginei mais complexa, mas é basicamente isso.
Mas, hoje, coisa incrível me aconteceu. Eu fui surpreendida!

Passeando pelo orkut, fugindo da minha música, das notas, das texturas, dos ritmos, das dinâmicas, das polifonias, da seção final, do como fazer o multifônico X no clarinete, dos instrumentos e do prazo do concurso, fui clicando nas minhas comunidades.
Click no Fernando Pessoa, tópicos bobos, click no Shakeaspeare e "qual seu personagem favorito do Shakespeare?" - e eu achei aquela pergunta de extremo cretinismo pois escolher UM personagem favorito de Shakespeare é como as armadilhas do Jigsaw nos Jogos Mortais: vc prefere perder os dois braços e sangrar até a morte ou vc prefere que uma lâmina te corte ao meio, verticalmente, em 60 segundos?! Porra?! Que injusto perguntar, sem necessidade, se eu prefiro morrer de braço arrancado ou cortada ao meio! que injusto perguntar se prefiro Hamlet ou Otello, se prefiro Nutella ou Toblerone! (meu punhado fechado se fazendo notar, claro). Click no Pablo Neruda e aparece nas comunidades relacionada uma foto colorida! Que legal! Porque sempre os escritores são em preto e branco, velhos, empoeirados, respeitáveis e intocáveis. Fui ver e era uma mocinha bonita, cor-de-rosa e cabeluda, vento leve na cara e olhinhos de criança, com a boca meio aberta com ar de "sou boazinha, me coma" (veja como sou má e meu punho é apertado). Tá, tô de saco cheio, tô putadavida com o prazo e porque não tem tímpanos no ensemble do concurso (e eu escrevi MUITA coisa para tímpanos na minha música), preciso esfriar a cabeça e me distrair da minha ira. Entrei no blog da mocinha poetisa. Nunca tinha ouvido falar, nunca tinha lido, nunca vi mais gorda.
E achei tudo tão bonitinho, tão clarinho, tão coloridinho, que desconfiei. Sou muito desconfiada, aliás; uma casa organizada demais, uma pessoa boa demais, as coisas dando certo por tempo demais, uma vaga para estacionar na sexta à noite na Vila Madalena e eu já acho que aí tem coisa. E normalmente tem. Fui lendo as postagens dela e, não sei explicar - como normalmente sei-, mas eu achei tudo ali tão cuidadoso, tão leve e tão bonito. E eu não acredito no bonito. Não mesmo. Bonito pra mim é máscara e feio pra mim é transcendência. É assim, fazer o que... é esse meu punhado, "tou contigo e não abro".
Eu chorei.
De tão desarmada que fiquei.

Tudo ali era tão bonito... Não era um bicho espinhento como eu, armada até os dentes com argumentos farpudos, tentando explicar ao mundo de quais doenças ele sofre e de todas as implicações de xyz e de todas as etceteras e etceteras adicionadas à problemática humana, isto por causa distodistoedaquilo, da injustiça e da desigualdade e do precisa mudar. Ela ia existindo, leve, distraída, falando da beleza das coisas, das idéias, do tempo e até das pessoas (!). Tudo tão despropositadamente bonito...

Eu vi uma pessoa bonita hoje. E isso me surpreendeu.
Obrigada, moça.


Vou abrindo a mão aos poucos... acho que nada vai escapar.
E se escapar, eu vou lembrar de mim, apesar das farpas.

16/02/2009

Bancos

A palavra da vida e da morte é: dinheiro.

Pois que hoje, poucos minutos antes do meu almoço, recebo um telefonema do banco do qual sou cliente, segundo me disse Djalma, há 4 anos:
-Senhora Fernanda, aqui é o Djalma do banco X e estamos ligando para uma proposta interessantíssima para a senhora.
-Hm.
-A senhora passa a ter cobertura de 300 reais por dia, 300 reais POR DIA, em caso de hospitalização. Acidente automobilístico, acidente aéreo, fraturas, amputagens, problemas na gravidez, câncer e inclusive UTI, U-TÊ-Í! Pagando apenas dezenoveenoventareaismensais a senhora pode ficar tranquila no hospital. Para simular o benefício, imagine a seguinte situação: a senhora sofre um acidente de carro e vai para a UTI, fica enternada 10 dias e no final a senhora recebe diretamente na sua conta corrente o montante total de: três mil reais, TRÊS MIL REAIS, senhora Fernanda, em apenas 10 dias, 10 dias na UTI! Podemos estar enviando a documentação ainda hoje para a senhora conferir todos os benefícios oferecidos por esse inovador plano que o banco X oferece aos seus clientes preferenciais. Posso estar enviando a documentação para a senhora, senhora Fernanda?
-Não.
-Mas por quê, senhora Fernanda? Olha, este é um pacote exclusivo para os clientes do X, inovador e moderno que atende todas as necessidades em caso câncer, problemas de gravidez, UTI... E por apenas dezenoveenoventareaismensais... Posso estar enviando a documentação para a senhora analisar com mais calma?
-Não. Não tenho interesse.


Veja, que não estou aqui reclamando e falando por um sentimentalismo não-prático (pô, todo mundo pode ter câncer, sofrer um acidente de carro ou ter as mãos amputadas... claro!). Mas é esse jeito. Esse jeito de querer vender a propaganda da minha morte para que, pagando, eu tenha mais segurança da minha vida.

E meu suco gástrico esquenta não só por causa do banco, mas também porque um ser humano se torna tão imbecil ao ponto de passar a mão no telefone e dizer essa verborragia imunda e insensível, essa poética burocrática, esse bem-querer com parcelas mensais de 19.90, e aceitar ganhar dinheiro para se tornar gradualmente em algo que não é mais nem gente (por que não sente), nem bicho (porque acumula dinheiro) nem coisa (porque pensa). É algo novo. Um ser inovador. Inovador...

15/02/2009

O que é a polícia?

Moro na Praça General Araripe de Faria.
Este fato passava despercebido em minhas reflexões, já que é tão cotidiano ter de dizer e escrever meu endereço– preenchimento de formulários para bancos, vídeo locadora, hospitais, sorteios de carros no auto-posto, para um amigo ou parente old fashion que gosta de enviar cartas, etc. – que morar na praça General X,Y ou Z nunca foi motivo de crispas. Mas, na sacada do apartamento, que tem vista para a praça, me ocorreu: eu moro numa praça cujo nome homenageia um GENERAL. Este fato até então passava irrelevantemente sobre minhas telhas.

Que muitas praças, ruas, avenidas, rodovias, pontes, parques e teatros homenageiem militares não é novidade no Brasil. A questão do merecimento e do reconhecimento na real não é uma questão, nunca suscita como tal, e é uma realidade pronta: "o mundo já estava assim quando me dei conta dele ou do que já fizeram dele".
Se o militar, cujo nome é celebrado por meio da nomeação de uma ponte, torturou centenas de compatriotas, matou outras tantas pessoas covardemente e aceitou suborno e agrados ilícitos, ele certamente não fora homenageado por tais fatos. Então fora homenageado por quais fatos? E por quem?
Eu nunca soube de nenhuma votação ou sequer discussão sobre a nomeação de ruas, avenidas, praças, parques, museus, teatros etc. Nunca ninguém me consultou.
Esta questão pode ser considerada como "é só um nome de ponte, tem gente morrendo de fome por aí", mas este ponto revela, ainda que parcialmente, qual o valor dado à polícia e como ingenuamente ou ignorantemente entendemos os serviços militares.

Muito embora eu não seja historiadora, estudiosa das histórias e estórias trazidas do passado até aqui, contadas sempre por um interesse, por um povo, por uma crença, por um poder (parcialidades irreversíveis), confio que estas informações sejam verdadeiras: desde civilizações bastante remotas, até nos tempos de escravidão com chibata e pau-de-arara, os que tinham mais poder compravam direta ou indiretamente a tão necessária segurança.
Pois que o senhor medieval, rico dono de terra, tinha seus cavaleiros para evitar que seu feudo fosse invadido ou que seus servos fugissem; esses cavaleiros recebiam benefícios que os servos que cultivavam a terra não recebiam, mas não tinham o poder que o senhor feudal tinha. Eles ganhavam a vida protegendo um cara rico, matando e caceteando os caras pobres, sendo ele próprio um cara pobre de origem pobre.
No período de escravidão (quando ainda era escravidão declarada e não a atual, velada) tínhamos o capitão-do-mato: um negro pobre, que andava armado e à cavalo, que trabalhava para o branco rico, protegendo sua propriedade e seus "bens", vigiando e capturando outros negros. Ele era um empregado público, cuja função era capturar (não-amistosamente) os negros escravizados. Em suma, ele era um cara negro e pobre, que trabalhava para o cara branco e rico, oprimindo outros caras negros e pobres.
Obviamente a questão aqui não é negro versus branco, rico versus pobre, mas é mostrar a origem daquilo que hoje chamamos de "polícia", de "força militar", de "proteção".

Percebemos que a proteção nunca fora para os que precisavam ser protegidos. Os "protetores" não tinham como função proteger as pessoas de estupros, privações, torturas e morte. A proteção só era destinada àqueles que tinham injustamente mais do que deveriam ter, que tinham mais poder, mais dinheiro e que de tanto terem temiam perder. Não se trata de uma proteção à vida, mas sim de uma proteção dos bens, do dinheiro, do poder e da manutenção do poder. Se fosse uma proteção à vida, que se protegesse aqueles que trabalhavam de sol a sol e colocavam os alimentos do solo à mesa, aqueles que eram oprimidos, humilhados, injustiçados.

Pois que, olhando a placa da minha rua, me dei conta que eu nunca havia pensado, por mim mesma, o que é a polícia, o que ela representa e a quem ela representa. A origem da nossa polícia é esta: a violência, a força, o poder financeiro e político constroem o que é entendido como "segurança" e "proteção", que são destinadas a zelar por aqueles que detêm poder.

A polícia da qual falamos é filha daquele capitão-do-mato, que oprimia gente como ele, em troca de ter um pedaço parco e sujo de poder. A polícia em questão protege políticos e bancos, fuzila adolescentes, extermina em massa, agride grevistas que buscam melhoria em seus salários de maneira lícita, espanca adolescentes que se manifestam em passeatas, abusa do poder para obter regalias, corrompe e se deixa corromper. Esta suposta entidade protetora usufrui de sua influência, do respeito, da confiança e do poder que a maior parte da população dá a ela, de maneira malevolente, atentando contra a vida das pessoas não-poderosas, como se pudessem gozar de um direito divino de vida e morte, ou de poder escolher quem merece ou não proteção.

Quem são esses "ex-cidadãos" que deixam de encarar seus compatriotas como cidadãos, e passam a tratar aos não-poderosos como se fôssemos empecilho à ordem? Esta ordem beneficia a quais pessoas? Estas algemas são utilizadas contra quais bandidos? Esta polícia protege os interesses de quem?
Por que um policial fuzila mendigos na rua e não fuzila o político que desvia o dinheiro que criaria escolas, hospitais, facilitaria o acesso à moradia e evitaria que estes mendigos estivessem nas ruas?
Por que um policial atira bombas de "efeito moral" (que moral é essa?!) numa manifestação de professores do ensino público que reclamam por melhorias nas escolas?
Por que um policial protege o palácio do governo e atira contra o povo que reclama por ser injustiçado?
Por que, alguns seres humanos, ainda se rebaixam ao nível de tentar lamber o resto podre deste poder injusto, aumentando ainda mais a vala que enterra o povo para aumentar a altura do pedestal do poder de uma minoria tão devassa?





Polícia de SP e universitários (2007)

13/02/2009

Toalha de mesa

Hoje, tirando a toalha de mesa da minha casa, me lembrei de 3 situações iguais porém distintas:

- Fernanda! Cuidado pra não sujar a toalha de mesa da sua avó!
- (ahn?) (ahnnnn!) (...) Tá, mãe.

(10 anos depois)
-Fernanda! Olha a toalha, minha filha!
- Tááááá, mãe!!!!!( uuhhhhhh!!!! ) (porra, toalha serve pra quê, senão para não sujar a mesa?! toalha serve para SUJAR A TOALHA, que é muito mais fácil de limpar do que toooda a mesa! Chata!)

(mais 10 anos depois)
-Bernardo, cuidado quando for tirar isso (jogo americano) porque senão vai cair sujeira na toalha e vai dar trabalho lavar.

(17 segundos depois)
%&&(/(/"&%§%&!"§BZGBEZ(H!"(EG!&"G %%&!$&%"&§!!!!)(=)§/$)/
Que que eu tô falando uma coisa dessas?!?! Que horror!!!

(...)
Mas realmente vai sujar a toalha e vai ser um saco lavar isso.

(...)
Meu deus... tô ficando igual à minha mãe.

(...)
Não, o que está acontecendo agora é que só depois de 20 anos eu pude entender a minha pobre mãe. E acontece que só agora eu tenho a mesma idade que ela tinha quando eu tinha 5 anos e percebi pela primeira vez na vida que pode acontecer de uma toalha de mesa sujar e que isso não é desejável, mas que mesmo não sendo desejável ela está lá para isso.

Não, eu não fui clara ainda.
O que eu quero dizer é que agora eu entendo.
Minha capacidade de me expressar por meio da escrita é totalmente insuficiente para que eu possa explicar o que eu entendi. Mas foi tal entendimento e com tal força que as tripas se movem apertadamente no meu interior, entre felizes e enternecidas, rejuvenescidas e maduras.
E agora eu não tenho mais como pedir desculpas para a minha mãe por eu ter sido ignorante. Porque esta é uma situação tão-tão pequenininha e aparentemente sem importância, que ela não entenderia. Se eu mesma não consigo explicar, como ela poderia me explicar que ela entende? Ou talvez sim... Talvez ela me entenda. :)


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De tão densa
e de tão intensa
morreu de tanto calar.